Cientistas brasileiros que são referência em edição genética e xenotransplantes viram com otimismo a notícia de que cirurgiões em Nova York conseguiram realizar, pela primeira vez, um transplante de rim de um porco para uma paciente humana sem que houvesse rejeição do órgão.
No Brasil, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) planejam seguir o mesmo caminho. O cirurgião e professor emérito da Faculdade de Medicina da USP Silvano Raia avalia que a técnica deve mudar completamente o modo como os transplantes são feitos hoje. Aos 91 anos, Raia faz a análise com a autoridade de quem foi o primeiro cirurgião do mundo a realizar um transplante de fígado com um doador vivo, em 1988.
Para o cirurgião brasileiro, é bem possível que, já na próxima década, sejam usados apenas órgãos animais em transplantes para humanos. Ele prevê que devem ocorrer procedimentos do tipo já nos próximos 6 ou 12 meses em países como China, Estados Unidos e Alemanha.
No Brasil, o processo vai demorar um pouco mais. Apesar de as pesquisas já estarem em andamento há anos, o estágio do desenvolvimento ainda está aquém do visto nos países que lideram a corrida.
Uma das etapas que ainda precisam ser cumpridas no país é a construção de um biotério – um local controlado e com ambiente sanitário adequado nos quais os embriões serão introduzidos em uma porca matriz.
Os pesquisadores da USP buscam verba junto a instituições de pesquisa e secretarias do governo estadual de São Paulo – principalmente o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) – para construir a instalação.
Após essa fase, a previsão é de que leve cerca de um ano e meio para que a estrutura fique pronta. Lá, o processo de implantação dos embriões poderá ser feito de forma estéril, como numa sala de cirurgia. Dessa forma, é possível evitar a contaminação dos animais com patógenos – organismos que podem ser prejudiciais a humanos.
Até agora, os cientistas já conseguiram fazer a modificação dos genes de embriões de porcos – para que, no futuro, o rim e outros órgãos transplantados não causem rejeição nos humanos. A parte do procedimento que envolve edição genética está sendo feita no Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano da USP, liderado pela geneticista Mayana Zatz.
A expectativa dos cientistas é de que, até o fim do ano que vem, nasçam os primeiros porquinhos geneticamente modificados. Esses ainda não poderão ser transplantados para humanos, mas vão servir de teste, para que os cientistas saibam que são capazes de produzi-los.
"A gente pretende fazer primeiro um teste com animais ainda não clinicamente transplantáveis, que é o que a gente chama de uma prova de conceito. Primeiro, tem que transplantar um embrião numa porca e ver se vão nascer os porquinhos com os genes que causam rejeição editados – silenciados", explica Mayana Zatz.
Para pacientes sem doador humano
A ideia dos cientistas é começar com os rins porque eles podem ser colocados sob a pele do paciente receptor, explica Zatz. Se o transplante não der certo, o órgão pode ser retirado – e o paciente volta para a fila de transplantes e para a hemodiálise.
"Se começar com o coração – que no futuro a gente vai querer transplantar –, se tirar [o coração da pessoa doente] e o [transplante] não der certo, ela morre", lembra a cientista.
O processo será feito em etapas: primeiro, haverá testes em pessoas com morte cerebral, como foi feito nos Estados Unidos, explica Silvano Raia.
Depois, em cerca de 6 meses a 1 ano, a intenção é que o transplante do rim de porco seja feito em pessoas que estão fazendo hemodiálise e que não tenham doador humano compatível. Além disso, a expectativa de vida delas deverá ser menor que o tempo de espera previsto para receber o órgão.
"Quer dizer que esses pacientes não têm chance de ser transplantados – ou porque estão muito debilitados, ou por idade, qualquer coisa. A esses pacientes vamos oferecer uma alternativa. Para esses primeiros casos, se o xenotransplante não resultar positivo, nós retiramos o enxerto, colocamos o doente em hemodiálise e ele passa automaticamente a ter prioridade na lista de espera para um transplante humano", detalha o médico.
Essa primeira população transplantada será observada por um período também de 6 meses a 1 ano.
"Se o resultado for bom – e eu acredito que será – aí progressivamente vamos ampliando o número de candidatos a quem será oferecida a alternativa", afirma o médico.
Por causa da edição genética, é possível que esse tipo de transplante traga, ainda, uma vantagem adicional: a de que os pacientes que recebem o órgão não necessitem dos chamados medicamentos imunossupressores – que agem, como o nome diz, inibindo o sistema imune para que ele não rejeite o órgão novo. Mas essa é uma pergunta que só poderá ser respondida no futuro.
Fonte: G1